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Notícia - Entenda qual a definição jurÃdica de trabalho escravo
» 24/07/2012
Entenda qual a definição jurÃdica de trabalho escravo
“Porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente†(Disparada, de Geraldo Vandré)
Desde os primeiros momentos de formação do Estado liberal, o trabalho livre aflorou como a principal razão para a efetiva caracterização da dignidade humana. Afinal, se a “autonomia†é a expressão e o fundamento da “dignidadeâ€, não se poderia entender digno aquele que não tivesse a plena liberdade de decidir se deseja ou não oferecer a sua força laboral.
O afloramento dessa liberdade de escolha (dessa autonomia, em outras palavras) fez com que os trabalhadores se tornassem sujeitos de direito, aptos, portanto, a comercializar a sua força laboral. Isso, entretanto, lhes custou preço elevado, pois, diante da sua fragilidade econômica, não teriam, senão pela intercessão do Estado, condições de negociar em situação de igualdade a prestação dos seus serviços.
Surgiram, por conta disso, depois de muitas pressões dos segmentos representativos da categoria operária, as normas tutelares trabalhistas com o objetivo claro de proteger os trabalhadores de suas próprias fraquezas. Revelaram-se mais claramente, assim, as relações entre “dignidade†e “autonomiaâ€, permitindo concluir que a dignidade pressupõe um mÃnimo de autonomia, e que, justamente por isso, nenhum dos sujeitos de uma relação negocial pode ter anulada totalmente a sua própria autonomia, ainda que ele expressamente aceite isso.
É nesse contexto de dignidade e autonomia que emerge a temática do “trabalho escravo†no Brasil.
Mas, enfim, ainda existe escravidão no Brasil?
Para bem responder a esse questionamento é fundamental dizer que o conceito de “trabalho escravo†engloba as distintas figuras do trabalho “forçadoâ€, “indecente†e “degradante†e que, em rigor, “escravo†é um qualificativo dado ao trabalho, e não ao trabalhador. Afirma-se isso porque qualquer trabalhador, na condição de pessoa humana, tem a possibilidade jurÃdica de invocar direitos, o que, obviamente, não ocorreria se ele fosse um escravo. Exatamente por isso, o artigo 149 do Código Penal criminalizou a conduta sob a forma verbal “reduzir alguém à condição análoga à de escravoâ€, isto é, fazer alguém assemelhado a um escravo por um conjunto de indignas exigências. Veja-se o dispositivo na sua integralidade e atente-se para o fato de que apenas em 2003, por força da Lei nº 10.803, de 11-12-2003, o legislador procurou dar contornos mais precisos ao tipo penal que, até então, se resumia à primeira e genérica frase contida no caput do artigo a seguir reproduzido:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dÃvida contraÃda com o empregador ou preposto:
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. (NR) (Redação dada ao artigo pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003, DOU 12.12.2003)
Respondendo, então, à indagação, pode-se dizer que a escravidão no Brasil não é mais visÃvel no seu sentido histórico, mas, sim, em uma perspectiva contemporânea. A escravidão da atualidade, que existe e que incomoda, é fruto da fragilidade de alguns trabalhadores (normalmente rurais, domésticos ou estrangeiros irregularmente ingressos) que, em busca da satisfação de suas necessidades essenciais, são levados a extrapolar, mesmo contra as suas vontades, os limites de suas próprias dignidades.
É exatamente o rompimento desses limites que permite a formação do conceito de “trabalho escravoâ€, especialmente quando o trabalhador:
a) É sujeito a trabalho forçado, assim entendido, nos termos da Convenção sobre o Trabalho Forçado, de 1930 (OIT), aquele exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente, tirante aquele exigido em virtude de leis do serviço militar; que faça parte das obrigações cÃvicas comuns aos cidadãos; exigido de uma pessoa em decorrência de condenação judiciária e executado sob fiscalização e o controle de uma autoridade pública; exigido em situações de emergência ou em circunstâncias que ponham em risco a vida ou o bem-estar de toda ou parte da população ou, ainda, relativo a pequenos serviços comunitários.
No conceito de trabalho forçado estão inseridos diversos comportamentos instrumentais, sendo a retenção do operário no local de trabalho um dos mais evidenciados, seja pelo cerceio do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, seja pela manutenção de vigilância ostensiva no local de trabalho, seja pelo apoderamento de documentos ou objetos pessoais do trabalhador;
b) É submetido a trabalho indecente, assim compreendido aquele realizado em jornadas exaustivas, inadequadamente remunerado ou, em última análise, fora do padrão mÃnimo de tutela ao trabalho digno;
c) É levado a cumprir trabalho degradante, assim entendido aquele que, diante da ausência de garantias mÃnimas de saúde e segurança no ambiente de trabalho, produz desgaste fÃsico (motivado pelo contato permanente e sem a devida proteção individual com agentes fÃsicos, quÃmicos ou biológicos hostis à saúde ou à incolumidade fÃsica) ou degeneração moral (fundada na realização de atividades penosas ou aviltantes);
Mas o que é que acontece com quem reduz trabalhadores à condição análoga à de escravo?
Como se viu, aquele que cultiva o trabalho escravo está sujeito à legislação penal, que prevê, no mencionado art. 149 do Código Penal, reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da aplicação da pena correspondente à violência perpetrada. Essa tutela, entretanto, não tem sido considerada suficiente para inibir o referido comportamento odioso.
Por ser tênue demais a pena em relação ao agravo e por existirem diversas alternativas jurÃdicas de abrandamento das sanções criminais, a resposta mais enfática contra o trabalho escravo tem mesmo vindo da Justiça do Trabalho. Os seus magistrados, quando provocados a reconhecer a ocorrência do trabalho escravo e as consequentes lesões, têm aplicado dissuasórias indenizações por danos morais transindividuais.
Por ser o trabalho escravo um tema que produz verdadeira repulsa social e por conta da consciência de que a sua eliminação constitui condição básica para o Estado Democrático de Direito, foi lançado em 2003 pelo governo federal brasileiro o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, que apresentou medidas a serem cumpridas pelos diversos órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, Ministério Público e entidades da sociedade civil brasileira.
O Poder Legislativo federal também deu passos largos na cruzada contra o trabalho escravo. A Câmara dos Deputados aprovou em maio de 2012 a Proposta de Emenda Constitucional 438/2001, que prevê o confisco de propriedades em que trabalho escravo for encontrado, destinando-as à reforma agrária e ao uso social urbano. Espera-se, com isso, um acréscimo ao artigo 243 da Constituição da República, que já contempla o confisco de áreas em que são encontradas lavouras de psicotrópicos.
A sociedade brasileira deixa patente, portanto, que, apesar de o tema trabalho escravo ser reiterativo, a dignidade humana é a sua mais importante diretriz.
* Luciano Martinez é Doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Direito Privado e Econômico pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Mestre em Direito Social pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM – tÃtulo reconhecido pela USP) e Doutorando em Direito Social pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM). É Juiz do Trabalho, Titular da 9ª Vara do Trabalho de Salvador, Professor Adjunto de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da UFBA. Coordenador da Pós-Graduação em Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da UFBA. Professor convidado em diversos Programas de Pós-Graduação. Atua nas áreas de Direito do Trabalho (relações individuais e coletivas), de Processo do Trabalho e de Direito da Seguridade Social. Autor do “Curso de Direito do Trabalhoâ€, publicado pela editora Saraiva. Maiores detalhes: http://lattes.cnpq.br/8883729921865765
Fonte: Última Instância
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